quarta-feira, 29 de agosto de 2007

VIVENDO COM DEUS

Texto de Joel Theodoro,
pastor no Rio de Janeiro
Fotos: http://www.flickr.com


Em algum lugar - se em página de papel ou página virtual, não me lembro bem - li o caso de um sujeito que vivia nas montanhas geladas do Canadá. Era um morador que sabia dos perigos naturais e normais que o cercavam, principalmente na época de maior frio, coisa que também era muito comum por ali, além de natural. Ele tinha uma cadela com alguns filhotinhos de não muito tempo e, preocupado também com o bem-estar de seus animais de estimação, fez uma pequena portinhola por onde ela e os filhotes poderiam entrar para o refúgio doméstico em caso de perigo.
Uma certa vez, enquanto os filhotes brincavam com os ossos de um alce morto por ali algumas semanas antes, a mamãe cadela pressentiu a chegada de lobos famintos e chamou os filhotes para o abrigo. Foram todos, menos um, que preferiu ficar sozinho com os ossos só para seu deleite. Chegaram os lobos e, claro, devoraram o filhote. A mãe o chamou, mas ele não fez a sua parte, não obedeceu. E isso o levou à morte.
A moral disso tudo é que conosco também é assim: a vida nos oferece um sem-fim de ossos apetitosos, mas para ter uma vida realmente devotada a Deus precisamos aprender a ouvir a Sua voz de chamado e, rapidamente, obedecê-la. Isso nos dará sobrevivência e vida em paz com Ele.

Viver com Deus não representa apenas ter a intenção de fazê-lo, mas a real condição de estar ao lado de Deus. Ou seja, é mais que querer: é poder estar ao lado dele. Deus é soberano e dita as normas de aproximação íntima. Talvez uma de nossas maiores confusões seja querer viver ao lado de Deus, sendo quem ele é, sem querermos nos dobrar a ele, mas querendo que ele se dobre a nós. Na realidade, parece fazer parte de nossa história relacional com Deus o desejo permanente de que ele se faça mais humano que nós mesmos, a fim de que nossa humanidade se reflita nele. Enquanto isso, muitos têm desejado firmemente se tornar um deus entre os homens. Os gregos antigos, com seu Olimpo, talvez tenham demonstrado isso melhor que nenhum outro povo.
O Deus da Bíblia nos quer como filhos, mas filhos segundo o seu propósito. Não filhos emprestados, ou afilhados de segunda classe, mas filhos com todas as letras, o que representa dizer, também, filhos com todos os direitos. É bem verdade que sempre que se faz referência a direitos é impossível não se refletir sobre os deveres assumidos, o que é muito natural que façamos.
Em tempos pós-modernos, ou tempos pós-cristãos usando uma terminologia muito apreciada e utilizada por Francis Schaeffer, nem sempre conseguimos compreender bem as concretudes, por vivermos em processos de relativização absoluta de valores. Sobre isso seria interessante falarmos um pouco mais, mas creio que ficará para uma próxima ocasião. Mas o fato é que não conseguimos mais pensar em termos absolutos porque tudo para nós deixou de ser absoluto. Tampouco conseguimos categorizar o certo e o errado, pois não entendemos mais o certo e o errado como tais. Aliás, nem nossa habilidade de percepção das diversas possibilidades de análise de um mesmo fato anda clara em nosso intelecto.
Como, então, viver com um Deus absoluto? Como andar com um Deus que mostra que há certo e errado na vida e em nós mesmos? Gostaria de parar um pouco e analisar, mesmo que não em profundidade, algumas disposições e modelos que seriam necessários para vivermos com Deus segundo os padrões dele e não segundo nossa cabeça. O problema, talvez, resida no fato de nós, filhos de Deus e que conhecemos sua Palavra, sermos levados a crer que nossa estatura espiritual está boa, pois, como vimos, não categorizamos mais um monte de coisas como deveríamos.
Por quais razões seria importante analisarmos algo que deveria ser tão natural para nós, filhos de Deus? Creio que por, pelo menos, três delas:
a) Porque nosso coração nos engana todo o tempo (Jeremias 17.9) e com isso podemos pensar que estamos bem, quando vamos mal.
b) Porque se não formos atentos em nossa espiritualidade entraremos por caminho de negligência (Hebreus 6.11-12).
c) Porque temos consciência que lutamos todo o tempo contra forças maiores que nós, forças espirituais do mal, somente debeladas pelo poder de Deus (Efésios 6.12).
Para chegar às disposições e aos modelos, tomei uma pequena parte das Escrituras, encontrada em 1 Pedro 1.13-16, da qual destaco algumas sentenças muito significativas para nossa reflexão e para a obtenção de respostas para nossos corações ansiosos por Deus. Quais seriam as disposições necessárias para que fôssemos re-educados na busca e na convivência íntima com Deus? Ora, com base no versículo 13, posso dizer que há pelo menos três delas:

1. A primeira é a disposição intelectual, com a observação de Pedro “estejam com a mente preparada”. Estar com a mente preparada é uma ordem muito significativa deixada para nós por Pedro, o apóstolo, e representa muito mais que uma simples indicação de conselho. É de fato uma ordem, um imperativo. Isso derruba por completo aquelas velhas lendas do meio cristão que “quanto mais ignorante, mais cheio do Espírito Santo”. O conhecimento de Deus é, de fato, fundamental para defender nossa fé dos ataques externos. Como seremos algo sem conhecimento de causa ou como nos defenderemos sem conhecer nossa fé? Como responderemos aos ataques da carne e do mundo se não tivermos a mínima noção daquilo em que cremos? Agora vem a pergunta de ordem prática: Como alcançamos isso? Estudando, orando e vivendo em comunhão. E isso nos leva a CONHECER.
2. Em seguida vem a disposição prática, quando Pedro nos diz que devemos estar “prontos para agir”. Sabemos que fazer é parte integrante do processo de ensino-aprendizagem e nos leva ao adestramento. Como sabemos, a Bíblia se utiliza comumente de linguagem militar e linguagem desportiva quando fala de nosso preparo e de nossa prontidão. Tanto num caso como no outro, adestramento nos remete a fazer “automaticamente” as coisas que precisamos fazer, sem titubear, sem parar para pensar, mas somos compelidos por repetição a agir em determinadas situações a fim de que as circunstâncias sejam devidamente vencidas por nós naquele momento. Na prática, então, como conseguimos isso? Após aprender - nossa disposição intelectual -, precisamos nos movimentar e trabalhar no Reino de Deus, o nosso Pai. Antes, pode ser precoce e mortal. Depois, pode ser demais e até letal. Isso nos leva a FAZER.
3. A última é a disposição dos sentidos, em que a advertência é para que os filhos de Deus “estejam alertas”. Estar alerta, como sabemos, é a condição básica para a sobrevivência em tempos de perigo, como durante os combates, por exemplo. Somente estando alertas é que podemos perceber a chegada do inimigo e nos antecipar às suas ações contra nós. Mais uma vez Pedro faz alusão aos conceitos militares que por tantas vezes nos são trazidos na Bíblia. Aqui temos uma forte referência ao plano espiritual e à necessidade que temos de manter intactas as nossas condições nesse plano. Ora, como conseguimos isso? Não há outra resposta, a não ser com busca incessante por santidade. A responsabilidade individual não pode ser ignorada por se crer na graça de Deus. E é isso que nos faz SOBREVIVER.
As disposições nos possibilitam estar na estrutura de convivência permanente com Deus e dela usufruir diariamente para nosso crescimento constante. As disposições apresentadas por Pedro dependem muito de nós e de nossa resposta ao chamado por vidas profundas com o Pai. Mais uma vez vemos aqui a consolidação do pensamento bíblico adotado pelo doutrina reformada, no qual recebemos a graça de Deus imerecidamente, e dela nos beneficiamos, mas de forma alguma ela nos permite uma vida de irresponsabilidade pessoal diante do mesmo Deus.

Uma vez tendo nós assumido a necessidade de nos dispormos nas três áreas acima, surge uma outra necessidade, que é a de nos enquadrarmos em pelo menos dois modelos que são requeridos a nós, filhos de Deus, pelo apóstolo Pedro. Para isso, nossas atenções se voltam para os versículos de 14 a 16 do mesmo capítulo. Todas as disposições que vimos passam ou requerem a presença dos dois modelos, que são a validação, se assim posso chamá-los, para que haja uma chancela sobre as disposições. São a formação que compõem os pressupostos, as razões pelas quais tomamos a iniciativa de nos dispormos para conhecer, fazer e sobreviver. Sem esses modelos, corremos o risco de querer vida espiritual sem paradigmas realmente bíblicos.

1. O primeiro é o modelo de obediência, o que percebemos quando Pedro fala de nós “como filhos obedientes”. Entendemos ao longo de toda a Bíblia que obedecer é a chave que abre as portas para Deus. Ele nos determina sua vontade e cabe a nós simplesmente obedecer as suas ordens. Fácil assim. Simples assim. A Bíblia não nos convida a argumentar as ordens de Deus mas, curiosamente, nos permite (e até mesmo convida) a conhecê-las, a desejar obedecê-las e a sobre-viver em função delas. Interessante que a obediência é complementada pelas disposições que aprendemos anteriormente, pois, embora seja nosso papel obedecer, Deus nos chama a fazê-lo de maneira lógica e ordeira. Há uma razão para Deus ter nos dado suas orientações e podemos racionalmente entender que houve motivações sublimes em seu corações para fazê-lo. Deus prefere, inclusive, que obedeçamos a sua vontade a que cultuemos a ele com sacrifícios, como está escrito em 1 Samuel 15.22, e isso é tão intenso que o contrário é considerado “feitiçaria”, ou seja, culto pagão! Quando somos obedientes a Deus refletimos Jesus, obediente até o fim em sua forma humana, o que o faz conscientemente nosso paradigma humano de obediência.
2. O segundo é o modelo de santidade. Pedro nos dá a ordem: “sejam santos vocês também”. Viver em santidade, precisamos entender bem, é viver separado por Deus e para ele, mas jamais quererá dizer que devemos viver isolados do mundo. Não é necessário que nos tornemos monges do deserto para estarmos integralmente separados para Deus, pois ele espera que sejamos capazes de viver separados enquanto estamos em meio ao mundo. Somos peregrinos e não extraterrestres. Devemos ser normais, embora diferentes. Precisamos interagir, mesmo cuidando de não nos contaminarmos. Estar no mundo, no sentido teológico, não significa ser mundano. Se o modelo de obediência passa pelas disposições de que falamos, a santidade é a mola propulsora para que atinjamos de maneira aceitável a idealização maior das mesmas disposições de forma a que Deus as aceite como corretas diante dele. Quando nos lançamos na busca por santidade refletimos o que Jesus nos ensinou, já que ele, em sua forma humana, também foi santo e se tornou nosso paradigma humano de santidade.

Jesus era e sempre será nosso paradigma divino tanto de obediência quanto de santidade, mas ao se fazer um de nós, ele nos mostrou ser possível haver correspondência entre nós e Deus, restaurando a intimidade anteriormente perdida entre Criador e criatura. Ele, que é o único caminho, também é o exemplo para nós seguirmos.

Como já foi dito, os modelos apresentados por Pedro correspondem aos meios pelos quais podemos concretizar as disposições firmadas, as quais só podemos alcançar se seguirmos os modelos de obediência e santidade, coisas que agradam a Deus e sem as quais não poderemos chegar a um nível profundo de relacionamento.
Deus nos quer para si, mas não de forma superficial ou leviana. Ele nos quer como filhos e como amigos, o que nos faz repensar nossa forma de cristianismo até aqui trilhado. Por essa razão, ao final destes pensamentos, talvez seja a hora de pedirmos a Deus forças suficientes para firmarmos junto a ele as três disposições que Pedro nos alerta serem necessárias a nós: buscar conhecimento de Deus, buscar ação no Reino de Deus e buscar sobrevivência espiritual diária. As bases para isso também precisam da ajuda de Deus: precisamos ter vida de obediência e vida de santidade. O que pedir então para chegarmos a esse nível de relacionamento com Deus? Pedir que ele derrame sua graça enquanto nos esforçamos por fazer nossa parte. Quanto à graça, ela é independente de nós, mas quanto ao nosso papel, precisamos de esforço para aprender, fazer e estar alertas a cada dia.

Convite feito, façamos a nossa parte.


Que Deus abençoe você e sua família.

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