pastor no Rio de Janeiro
Imagens: http://www.flickr.com/
A vida muitas vezes se parece a uma estrada. Pelo menos quando a olhamos de cá, de nossos olhos entorpecidos pela finitude a que nos vemos subjugados desde a nossa mais tenra percepção. A figura de uma estrada sendo o prosseguir vida afora é muito antiga. Aliás, creio que essa imagem pode estar mesmo impregnada nos mais íntimos pensamentos da coletividade humana.
Muitos foram os pensadores, artistas e poetas que se valeram dessa comparação para falar de suas frustrações, seus sonhos, suas limitações e, inclusive, de seus temores. Muitos tiveram a coragem que a maioria de nós não tem: expor a outros seus medos mais interiores. Uma das obras mais interessantes que conheço vem da poesia de língua portuguesa, saída da mente e da ousadia de um dos autores que mais gosto de ler, em suas múltiplas versões e personalidades autorais: Fernando Pessoa. Em seu Para além da curva da estrada, Pessoa trata exatamente disso: tornar o incômodo aberto e público, combinando sentimentos através de palavras como poucos sabem fazer. O poema:
Para além da curva da estrada
Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço,
e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que ha para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.
Pessoa pode ser aqui a transliteração da alma de qualquer ser humano que já tenha parado para pensar pelo menos uma vez em sua existência e a não-mais-existência apavorante do porvir. É isso que assusta o ser humano, ou seja, a incapacidade de comprovar a existência de algo apenas pela consideração firme em seus postulados transcendentes. O que queremos como raça, principalmente depois de nos tornarmos mais iluminados pelo Iluminismo (?), é atestar com provas aquilo em que estamos dispostos a crer, mesmo que seja uma tremenda mentira; ou, pelo menos, uma baita ilusão.
O que poderá haver para além do que tenho que percorrer na estrada da minha existência? A água fresca de um poço escavado ali para dessedentar os viajantes sedentos desta vida por vezes tão escassa de refrigério? Um castelo cujas muralhas me oferecerão a segurança eterna que tanto me faltou nestes fugazes tempos de peregrinação? Ou o que há após a derradeira curva nada será além de asseverar que, de fato, após a curva há mais estrada a percorrer?
A resposta imediata e mais comum nestes últimos poucos séculos tem sido a de não saber e nem querer saber ao certo. Afinal de contas, se meus olhos permitem que eu veja apenas o curto e o próximo, por qual razão deveria eu me arrepiar com relação ao que não saberei ao certo? Há uma interessante frase de Pessoa que, creio, sintetiza um pensamento mais corrente em nossos dias. Diz ele “Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.” E essa tem sido a resposta de milhares e milhares de pessoas que passam por toda a extensão da estrada de suas vidas olhando apenas para as belas flores que por vezes a ladeiam. Tal afirmação é coerente com algo que ele defende logo em seguida: “Se há alguém para além da curva da estrada.” Pessoa, creio, encarna toda uma civilização ocidental que escolheu fingir que não percebe que a estrada tem um fim, que as eventuais belezas terão um basta e que após a curva há algo, sim, que precisa ser alvo de nossos cuidados temporais. É geração que teima em crer que não crer é melhor, mais moderno e mais lúcido.
Em outro poema, Autopsicografia, o mesmo autor, falando do ofício poético, diz que “o poeta é um fingidor” e prossegue dizendo que ele “mente tão perfeitamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Somos assim. Temos sido assim. Infelizmente não para exercer o supremo ofício poético, mas para vivermos vidas de fingimento e mentira. Mentimos para nossos instintos mais profundos em teimar que não cremos. Tornamo-nos espécie rara de suicidas de esperança, flageladores de nossas próprias existências. O sabor do vazio preenche as bocas sedentas e famintas pelo gesto simples e mecânico de não querermos preencher nossa existência de outra maneira que não a produzida pela artificialidade dos contrastes de negação absoluta.
Um outro pensador, cristão, de uns dois mil anos atrás deixou um recado diferente, totalmente desprovido dos temores que sobressaltam o homem pós-moderno. Paulo, o apóstolo, intelectual que era, sem abandonar a sua característica humana, disse, como que num paradoxo, que para ele o viver era verdadeiro prejuízo, enquanto que o morrer era lucro. Ele era louco? Não. Apenas, em contrário ao que disse Pessoa, Paulo conseguiu ver além das cercas e arbustos que ladeiam as curvas nas estradas. Ele enxergou além, viu o depois, entendeu o que ainda não era, percebeu o que estava por vir. Como? Apenas permitindo que a certeza de fé absorvesse suas dúvidas. Descansou em pressupostos mais reais que a realidade que seus olhos materiais podiam ver, pelo fato de, ainda enquanto andava na estrada, ter se percebido tocado pelo Deus que está tanto após quanto antes da curva.
Quando vamos deixar de crer piamente que nossas limitações são mais que isso, muitas vezes alcunhando de ciência a nossa mesquinhez de alma? Quando vamos entender que para a estrada da vida há realmente uma curva cujo traçado não tem fim? Quando vamos perceber nossa eternidade e deixar de olhar apenas para o que vemos materialmente sem perceber a beleza do que ainda não vemos, mas cuja realidade pode começar a ser vivida ainda em meio à estrada?
Um dia teremos que nos responder sobre o jeito em que entramos na curva da estrada. Então será preciso aceitar o fato de que, tendo antes crido ou não, a curva terá chegado e a opção do não-saber não será mais considerada. A estrada é vida a ser vivida. Intensamente vivida. Mas com a intensidade que nos permita fazer bem a curva, principalmente a última.
Diferentemente de Pessoa, a quem tanto admiro, como já falei, estou seguro que precisamos entender mais da estrada e de suas curvas. Afinal, há apenas esta estrada a percorrer e há apenas uma derradeira curva a entrar. E Deus, que está lá a nos esperar, julgará finalmente como trilhamos e como fizemos a curva final de nossa existência.
É bom pensar nisso. É bom nos prepararmos para isso. Há uma garantia apenas, e ela está no âmbito da transcendência: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Palavras de Jesus que dão aval aos que por ele trilham sua jornada.
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