quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

UMA ESTRADA DE CURVAS DIFERENTES

Texto de Joel Theodoro,
pastor no Rio de Janeiro
Imagens: http://www.flickr.com/

A vida muitas vezes se parece a uma estrada. Pelo menos quando a olhamos de cá, de nossos olhos entorpecidos pela finitude a que nos vemos subjugados desde a nossa mais tenra percepção. A figura de uma estrada sendo o prosseguir vida afora é muito antiga. Aliás, creio que essa imagem pode estar mesmo impregnada nos mais íntimos pensamentos da coletividade humana.

Muitos foram os pensadores, artistas e poetas que se valeram dessa comparação para falar de suas frustrações, seus sonhos, suas limitações e, inclusive, de seus temores. Muitos tiveram a coragem que a maioria de nós não tem: expor a outros seus medos mais interiores. Uma das obras mais interessantes que conheço vem da poesia de língua portuguesa, saída da mente e da ousadia de um dos autores que mais gosto de ler, em suas múltiplas versões e personalidades autorais: Fernando Pessoa. Em seu Para além da curva da estrada, Pessoa trata exatamente disso: tornar o incômodo aberto e público, combinando sentimentos através de palavras como poucos sabem fazer. O poema:



Para além da curva da estrada

Para além da curva da estrada

Talvez haja um poço,

e talvez um castelo,

E talvez apenas a continuação da estrada.

Não sei nem pergunto.

Enquanto vou na estrada antes da curva

Só olho para a estrada antes da curva,

Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.

De nada me serviria estar olhando para outro lado

E para aquilo que não vejo.

Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.

Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.

Se há alguém para além da curva da estrada,

Esses que se preocupem com o que ha para além da curva da estrada.

Essa é que é a estrada para eles.

Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.

Por ora só sabemos que lá não estamos.

Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva

Há a estrada sem curva nenhuma.


Pessoa pode ser aqui a transliteração da alma de qualquer ser humano que já tenha parado para pensar pelo menos uma vez em sua existência e a não-mais-existência apavorante do porvir. É isso que assusta o ser humano, ou seja, a incapacidade de comprovar a existência de algo apenas pela consideração firme em seus postulados transcendentes. O que queremos como raça, principalmente depois de nos tornarmos mais iluminados pelo Iluminismo (?), é atestar com provas aquilo em que estamos dispostos a crer, mesmo que seja uma tremenda mentira; ou, pelo menos, uma baita ilusão.


O que poderá haver para além do que tenho que percorrer na estrada da minha existência? A água fresca de um poço escavado ali para dessedentar os viajantes sedentos desta vida por vezes tão escassa de refrigério? Um castelo cujas muralhas me oferecerão a segurança eterna que tanto me faltou nestes fugazes tempos de peregrinação? Ou o que há após a derradeira curva nada será além de asseverar que, de fato, após a curva há mais estrada a percorrer?

A resposta imediata e mais comum nestes últimos poucos séculos tem sido a de não saber e nem querer saber ao certo. Afinal de contas, se meus olhos permitem que eu veja apenas o curto e o próximo, por qual razão deveria eu me arrepiar com relação ao que não saberei ao certo? Há uma interessante frase de Pessoa que, creio, sintetiza um pensamento mais corrente em nossos dias. Diz ele “Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.” E essa tem sido a resposta de milhares e milhares de pessoas que passam por toda a extensão da estrada de suas vidas olhando apenas para as belas flores que por vezes a ladeiam. Tal afirmação é coerente com algo que ele defende logo em seguida: “Se há alguém para além da curva da estrada.” Pessoa, creio, encarna toda uma civilização ocidental que escolheu fingir que não percebe que a estrada tem um fim, que as eventuais belezas terão um basta e que após a curva há algo, sim, que precisa ser alvo de nossos cuidados temporais. É geração que teima em crer que não crer é melhor, mais moderno e mais lúcido.

Em outro poema, Autopsicografia, o mesmo autor, falando do ofício poético, diz que “o poeta é um fingidor” e prossegue dizendo que ele “mente tão perfeitamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Somos assim. Temos sido assim. Infelizmente não para exercer o supremo ofício poético, mas para vivermos vidas de fingimento e mentira. Mentimos para nossos instintos mais profundos em teimar que não cremos. Tornamo-nos espécie rara de suicidas de esperança, flageladores de nossas próprias existências. O sabor do vazio preenche as bocas sedentas e famintas pelo gesto simples e mecânico de não querermos preencher nossa existência de outra maneira que não a produzida pela artificialidade dos contrastes de negação absoluta.

Um outro pensador, cristão, de uns dois mil anos atrás deixou um recado diferente, totalmente desprovido dos temores que sobressaltam o homem pós-moderno. Paulo, o apóstolo, intelectual que era, sem abandonar a sua característica humana, disse, como que num paradoxo, que para ele o viver era verdadeiro prejuízo, enquanto que o morrer era lucro. Ele era louco? Não. Apenas, em contrário ao que disse Pessoa, Paulo conseguiu ver além das cercas e arbustos que ladeiam as curvas nas estradas. Ele enxergou além, viu o depois, entendeu o que ainda não era, percebeu o que estava por vir. Como? Apenas permitindo que a certeza de fé absorvesse suas dúvidas. Descansou em pressupostos mais reais que a realidade que seus olhos materiais podiam ver, pelo fato de, ainda enquanto andava na estrada, ter se percebido tocado pelo Deus que está tanto após quanto antes da curva.


Quando vamos deixar de crer piamente que nossas limitações são mais que isso, muitas vezes alcunhando de ciência a nossa mesquinhez de alma? Quando vamos entender que para a estrada da vida há realmente uma curva cujo traçado não tem fim? Quando vamos perceber nossa eternidade e deixar de olhar apenas para o que vemos materialmente sem perceber a beleza do que ainda não vemos, mas cuja realidade pode começar a ser vivida ainda em meio à estrada?

Um dia teremos que nos responder sobre o jeito em que entramos na curva da estrada. Então será preciso aceitar o fato de que, tendo antes crido ou não, a curva terá chegado e a opção do não-saber não será mais considerada. A estrada é vida a ser vivida. Intensamente vivida. Mas com a intensidade que nos permita fazer bem a curva, principalmente a última.

Diferentemente de Pessoa, a quem tanto admiro, como já falei, estou seguro que precisamos entender mais da estrada e de suas curvas. Afinal, há apenas esta estrada a percorrer e há apenas uma derradeira curva a entrar. E Deus, que está lá a nos esperar, julgará finalmente como trilhamos e como fizemos a curva final de nossa existência.

É bom pensar nisso. É bom nos prepararmos para isso. Há uma garantia apenas, e ela está no âmbito da transcendência: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Palavras de Jesus que dão aval aos que por ele trilham sua jornada.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Morte, vida e outras considerações

Texto de Joel Theodoro,
pastor no Rio de Janeiro
Imagens (na ordem):
- The Anatomy Lesson of Dr Tulp,
- The Presentation of Jesus in the Temple e
- The Raising of the Cross, todas de Rembrandt van Rijn.
Disponíveis em http://www.rembrandtpainting.net

Muitos e incontáveis são os problemas que cercam os seres humanos. Se você está lendo este post, provavelmente você tem menos problemas que mais da metade da população mundial. Refiro-me a problemas de ordem material, mesmo que sejam de coisas relacionadas à subsistência, como água e saneamento, sem falar em educação, segurança e bens sociais. Falo de mais de 4 bilhões de seres como eu e você. Infelizes, infortunados, à margem do mundo em que nasceram não se sabe para quê. Sofredores. Gente triste. Gente sem esperança. Sim, há coisas muito simples, mas sem as quais simplesmente morremos. Água potável e um pouco de ar puro, por exemplo.
É impressionante o número de pessoas que morre todos os dias por causa de dinheiro, seja seu ou do outro; legal ou não; limpo ou sujo. Muita gente se mata por coisas banais: um xingamento num sinal de trânsito, um olhar desengonçado e mal interpretado, um desafeto qualquer, uma palavra desencontrada de sentido. Outros morrem sem motivo algum, porque um menino qualquer acha que está num game e mata para contar à noite nas rodas miseráveis dos obscuros pontos de drogas e mortes anunciadas. Matar só para ter o que contar.

Morrer à toa assusta qualquer pessoa normal. Sabemos que morreremos todos, mas temos intuitiva esperança de que a morte chegará, via de regra, em idade avançada ou, na pior das hipóteses, e, enfermidade grave. A morte mata outras coisas no ser humano, levando não só a existência temporal, mas uma série de outros elementos adjacentes à vida humana. Os sonhos morrem com a morte. O sustento de uma família pode morrer com a morte. A esperança de felicidade pode sumir com a morte. A chance de mudança prometida a alguém desfalece com a morte. Muita coisa morre com a morte. Para muita gente, é uma pena afirmar, a vida eterna morre com a morte: a chance de ver Deus desaparece com a morte.

Para os miseráveis sem terra, sem roupa, comida ou água, a morte pode representar a última fronteira para tentar alguma coisa. Nada sabendo do que está além do suspiro final, tentam se agarrar à vida que têm apenas por medo do que não conhecem. Mas de tão difícil, talvez sonhem com dormir e simplesmente ficar dormindo. Morrer que nem passarinho, que nem um bichinho doméstico, como a Negrinha do Lobato. Coisa triste, sem chão, sem carinho.

Mas a miserabilidade não pára nas coisas tangíveis. É miséria da pior qualidade a miséria da alma. Aquela alma que se acostuma ao ódio, à morte desarrazoada, à trapaça, ao engodo, ao vilipêndio, à destruição do outro, talvez até por mórbido prazer. Esse infeliz é pior e mais infeliz que o outro, pelo menos sob a luz da ética humana. O que dizer que quem torna a vida de alguém uma desgraça? O que dizer dos que desviam recursos, comida e água de quem está à beira da morte, ansiando por um pouco que seja dessas coisas? O que pensar sobre os que manifestam contra raças, etnias e comunidades inteiras só por suas diferenças circunstanciais? A incomensurável capacidade humana de levar ao sofrimento assusta tanto quanto a morte, apavora tanto quanto o desconhecido além, enche de arrepios tanto quanto olhar gente estropiada pelas desgraças da vida.
Não haveria solução possível para nós, raça afeita à guerra e à morte, não fosse uma morte, por paradoxal que pareça isso. A nossa morte nos leva apenas ao caixão e à sentença eterna. A morte de Cristo, no entanto, o levou à vitória sobre a morte e nos permitiu fazer da morte um inimigo vencido. Morrer, para os feitos filhos de Deus em Jesus Cristo, é lucro, como deixa para nós Paulo, o apóstolo, ao dizer “para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Filipenses 1.21). Esse feito iguala a todos, de todas as procedências e condições sociais, numa demonstração clara da soberania divina. O que de nada carece e o que de tudo tem falta poderão fazer da morte apenas a última etapa antes da indizível alegria eterna. Igualam-se de maneira descomunal e impensável em qualquer sociedade ou modelo sócio-econômico. Nenhuma das teorias conhecidas, nem mais à esquerda nem mais à direita, seriam capazes de igualar assim dois seres humanos tão opostos por condições externas. Iguala os igualados em Cristo. Iguala os que se tornaram um só com ele.
Talvez não tenhamos resposta para os que sofrem de maneira tão severa no mundo, a não ser a resposta bíblica do pecado que domina o mundo caído e nos paga seu salário de tristeza. Comecei dizendo que os que lêem este texto são, provavelmente, menos sofredores que os milhares de miseráveis deste mundo, mas podem ser terrivelmente sofredores por dentro, no coração, nos sentimentos, na alma. Não importa. Qualquer sofrimento a que estamos sujeitos faz parte desta tênue existência, deste suspiro pelo qual passamos por este mundo. Mas há esperança, há salvação, há paz prometida, há vida a ser conquistada e alcançada. Afinal, o mesmo Paulo também registrou para nós que “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”. (Romanos 6.23).

Conhecer Jesus como amigo e salvador é tornar-se parte integrante de um projeto bem maior que nossas dores possíveis. É dom, ou seja, é algo dado. É gratuito. É vida eterna.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

A IGREJA QUE MARCHA

Texto de Joel Theodoro,
pastor no Rio de Janeiro
Fotos: www.flickr.com

Estas são as jornadas dos israelitas quando saíram do Egito, organizados segundo as suas divisões, sob a liderança de Moisés e Arão. Por ordem do SENHOR Moisés registrou as etapas da jornada deles. Esta foi a jornada deles, por etapas: Os israelitas partiram de Ramessés no décimo quinto dia do primeiro mês, no dia seguinte ao da Páscoa. Saíram, marchando desafiadoramente à vista de todos os egípcios, enquanto estes sepultavam o primeiro filho de cada um deles, que o SENHOR matou. O SENHOR impôs castigo aos seus deuses. Números 33.1-4

Estamos nos aproximando de mais uma Páscoa, festa das mais importantes do calendário cristão. A leitura dos eventos antecedentes à peregrinação dos hebreus pelo deserto, logo depois de terem sido libertados por Deus, nos ajuda a entender um pouco melhor algumas das coisas que cercam esse momento de nossa caminhada.

Assim como se deu com aqueles nossos irmãos do passado, muitas vezes somos abordados por nossos próprios pensamentos e não conseguimos nos ater a determinados fatos, embora eles tomem parte em nosso dia-a-dia como sendo normais para nós. Por exemplo, vivemos em constante movimentação. Não paramos para nada, já que somos levados a crer que, se pararmos um pouco, as coisas desandarão em nossa vida familiar, profissional, acadêmica, etc. Será? Às vezes, um pouco de tempero faz bem, até por nos ajudar a engolir melhor...

Alguns fatos importantes no texto bíblico acima devem nos ensinar a viver melhor como indivíduos, é verdade. Mas minha palavra pastoral de hoje vai em direção à comunidade cristã, seja a nossa, na Zona Sul do Rio de Janeiro, seja a de qualquer um que nos acesse em outra parte do globo terrestre.

Começo por perceber que os hebreus que saíram do Egito - em meio ao cataclismático movimento de Deus em favor de seus filhos - foram levados à jornada pelo próprio desejo de Deus, o que pode ser conferido nos textos bíblicos como um todo. É muito importante, no entanto, vermos que o mesmo Deus estabeleceu duas prioridades que antecederam a marcha do povo: eles precisaram se organizar e precisaram reconhecer uma liderança que os guiasse (verso 1). Só então puderam marchar.

Não tenho medo em reconhecer que nós, Igreja de hoje, estamos carentes de organização e de liderança (por um lado) e de reconhecimento de liderança (por outro lado). Temos parte do Corpo com muita organização temporal e nenhuma organização de espiritualidade; outra parte com enorme preocupação espiritual e nenhuma organização secular. Ambos os casos são perigosos e podem nos levar ao caos, seja espiritual, seja organizacional ou, pior, dos dois aspectos. Precisamos reconhecer o fato de que Deus trabalha em meio à organização: ele quer de nós que nos organizemos antes da marcha. Também somos carentes de liderança. Não de líderes, pois Deus os levanta a tempo, sempre. Somos carentes de lideranças pujantes que aceitem liderar simplesmente por quererem ser servos de Deus nessa sua vocação; também somos carentes de reconhecermos os líderes que Deus realmente levanta para nos guiarem Egito afora. Não líderes quaisquer, mas os que Deus nos envia. Precisamos reconhecer o Moisés e o Arão que Deus levanta em meio à escravidão que nos cerca. Eles serão nossos guias fiéis. Serão nossos pastores e comandantes.

Algo mais me chama a atenção: o povo sai de Ramessés “marchando desafiadoramente” à vista dos inimigos. Não seria possível marchar sem organização e sem liderança. Quem conhece o mínimo de estrutura militar sabe que seria impossível alcançar esse feito sem processo de comando. Mas uma tropa pode marchar cabisbaixa, mesmo recebendo ordens de avançar. A moral da tropa não se eleva com ordens, mas com liderança profunda e tocante. É tempo de revermos nossa postura no Corpo e nossa campanha em favor do Evangelho. Como temos marchado? Temos saído corajosamente à vista de nossos inimigos? Temos tido medo do mundo ou temos sido ousados e desafiadores?

Nestas poucas linhas pastorais demonstro meus cuidados com relação às almas que o Senhor deixa que conheçamos. Os nossos dias são terríveis, mas o cristianismo que temos a partir das Escrituras é simplesmente maravilhoso e possível de ser alcançado e vivido. Não que os elementos do mundo nos queiram servindo ao Senhor de maneira alegre e desimpedida, mas a Palavra de Deus nos ensina meios através dos quais alcançaremos a jornada almejada.

A exortação que deixo é apenas uma: marchemos desafiadoramente à vista de nossos inimigos! Alguns deles serão inimigos ocultos, pecados escondidos, afrontas de terceiros, levantes de maledizentes, desempregos, doenças, mortes em família, destruições familiares, prisões por amor a Cristo, enfados, canseiras, tristezas de percurso e tantas outras dificuldades circunstanciais que se nos apresentam ao longo da vida. É verdade que todas as pessoas estão sujeitas a tais coisas. Nós, filhos de Deus, no entanto, somos aqueles únicos que as enxergam como inimigos e não apenas como meras eventualidades.

O nosso testemunho deve ser o de cristãos organizados, conscientes de seguir e ser seguidos conforme o desígnio do Senhor. Nossa ação imediata é desafiar o mundo e nossos inimigos. Li há não muito tempo num dos preciosos livros de Eugene Peterson acerca da urgência que cerca o cristianismo (Uma longa obediência na mesma direção. São Paulo, Cultura Cristã, 2005). É isso mesmo: precisamos nos preparar, seguir e marchar. A libertação está do lado de fora, além da fronteira. Enquanto estivermos quietos e calados em nosso Egito, seremos escravos. Precisamos tomar nossas decisões cristãs; e temos que fazê-lo rapidamente. Afinal, fazemos ou não fazemos parte de uma Igreja que marcha?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

A VÉSPERA DE DIA NENHUM

Texto de Joel Theodoro,
pastor no Rio de Janeiro
Fotos: arquivo pessoal

Escrevo estas notas numa sexta-feira à noite. Faz calor no Rio de Janeiro, talvez bem diferente de outras sextas à noite, por aqui ou outros cantos. É véspera de sábado, como seria natural de se dizer de uma sexta-feira, não fosse o fato de que para muitos o amanhã não chegará quando o dia raiar. A vida é fugaz, as oportunidades passam rápido e o caminho que leva a uma tranqüilidade aparente na vida parece não ser tão fácil de ser trafegado.

Mas esta não é apenas mais uma sexta-feira que anuncia um sábado que vem pela frente. Algumas vésperas anunciam enormes tragédias ou grandes eventos, como a véspera da erupção do Vesúvio, a véspera da crucificação de Cristo, a véspera da entrada das forças aliadas em Berlin, a véspera do Tsunami e por aí vai. Sem falar na véspera do Natal e do Ano Novo. Há boas e más vésperas. E tudo o que aconteceu até hoje teve uma véspera.

O nosso problema é que, enquanto ainda estamos vivendo a véspera, não somos capazes de antever exatamente do quê ela é véspera, o que deixa estes quase 7 bilhões de seres totalmente entregues aos acontecimentos que lhe são completamente enigmáticos e indecifráveis. Estudar propostas de caos em possível alinhamento não nos permite determinar exatamente para onde se dirige o caos e onde cessará a fim de ceder lugar à calmaria.
A história humana, a despeito da sua peculiar incontrolabilidade dos eventos futuros, leva-nos a perceber que alguns de nossos atos tendem a agravar as possibilidades de nosso futuro, especialmente quando descuidamos das vésperas de nossa vida. Determinadas ações que pomos em andamento parecem nos conduzir a enormes possibilidades de desventuras e problemas que gostaríamos de evitar em nossa curta jornada por este mundo.

Pensando em todas essas coisas fiquei a pensar em festas como a que começa neste fim de semana no Brasil, o Carnaval. Não resta dúvida de que se trata de uma festa popular, com seu valor histórico e suas pinceladas de interesse antropológico e sociológico. Não resta dúvida alguma, também, que nos dias que atravessamos, quase ninguém mais quer se divertir como soíam fazer os mais antigos foliões. Na verdade, o Carnaval passa a representar abertamente aquilo que desde tempos imemoriais se destina a ser: a festa da carne; não a que se come antes da Quaresma, mas a que experimenta fatos e feitos diferentes e de emoções curtas, mas intensas. Esta véspera do Carnaval nos faz pensar no que será de uma enorme legião de foliões que talvez não tenham para suas vidas o dia seguinte à véspera que vivem.

Muitas mortes serão registradas nos hospitais e pronto-socorros Brasil afora. Mortes por atropelamento, excessos de álcool e drogas, infecções das mais diversas, mutilações etc. Enfim, muita desgraça acometerá muita gente. Muitos outros terão estes dias como uma penosa véspera da lenta morte que adquirirão sorridentes, a morte dolorosa e desesperançada das terríveis contaminações do sexo abrangente e irrestrito, da AIDS e das DST que rondam como espectros animados os acampamentos de gente comum que só queria se divertir. Estas realidades - duras e doloridas - são aquelas sobre as quais poderíamos, como raça, ponderar enquanto se pode, enquanto ainda é véspera. Infelizmente outras mortes serão noticiadas: família, moral, ética, consciência, esperança, auto-estima, além da própria alma.

A Bíblia traz uma palavra pelo menos interessante, mesmo para aqueles que não costumam lê-la nem buscar nela a direção para seus dias:
Ouçam agora, vocês que dizem: “Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro”. Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa. Ao invés disso, deveriam dizer: “Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo”. Agora, porém, vocês se vangloriam das suas pretensões. Toda vanglória como essa é maligna. Pensem nisto, pois: Quem sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete pecado. Esse é um texto encontrado em Tiago 4, versos 13 a 17.
A terrível advertência divina diz Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa. E, de fato, nenhum de nós é capaz de antever, desde a véspera, o que será o amanhã.
Estava pensando sobre tudo isso e resolvi escrever para postar em nosso blog. Talvez alguns que gostariam de ler não mais o façam amanhã, sábado de Carnaval. Nem nunca mais. Talvez amanhã um leitor qualquer se lembre de alguém que não mais está entre nós para ler os versos da Bíblia acima, nem meu simples pensamento. Nossa vida é tão passageira, que deveríamos pensar mais em nossos amanhãs e menos em nossas vésperas. Vivamos hoje sabendo das incertezas e naturais eventos - bons ou maus - que estão à espreita, logo após a curva que nosso caminho pode fazer. Pensar no que nos advirá significa pensar que nossas impossibilidades precisam ser cuidadas de alguma forma por quem as domina. Por isso o texto de Tiago nos fala da importância de atribuirmos ao próprio Deus as nossas venturas, o nosso amanhã, o nosso futuro - Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo. Acima disso, e mais importante, está a confiança em que o amanhã poderá, sim, vir, de forma intensa, dando seqüência à graça de Deus sobre nossas vidas.

Que hoje, nesta sexta-feira, a véspera represente não alguns dias de folia, mas o início de toda uma vida de paz e intensa alegria para todos os que se agarrarem na esperança bendita de um amanhã com Deus.

Bom feriado, com equilíbrio, descanso em família e reflexão. E que tudo isso sirva de base de transição de uma véspera para uma vida de alegria indizível em Deus.